Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
Mário Cesariny
Nobilíssima Visão (1945-1946),
in burlescas, teóricas e sentimentais (1972)
.
Conheci este poema lá para os lados do norte numa noite de chuva, há vários anos atrás
(Agora que páro para pensar, foi mesmo há muito tempo...).
Noite chuvosa que ficaria para a história da vida de várias pessoas, por ter sido a noite em que nos conhecemos. Noite essa, que viria a gerar amizades para toda a vida. Noite que terminou de dia. Noite das douradas no carro, de passagens por todas as capelinhas da poesia no Porto e arredores (e os arredores do Porto chegam bem longe...). Noite de um célebre tocador de guitarra. Noite de poesia. Adiante... Voltando ao Poema: Ainda o Cesariny era vivo, lembro-me de ouvir, surpreendentemente, este poema a ecoar por graníticas paredes. Fiquei maravilhada, rapidamente me apressei a sabê-lo de cor. Desse dia até hoje, já o disse um pouco por todo o lado, desde as profundezas dos Alpes às íngremes subidas das encostas dos vulcões, nos meus mais profundos momentos de nervosismo e de alegria. Este poema é uma espécie de Yoga mental, para mim!
Porque é que me lembro que chovia nessa noite?
... bem isso já são pormenores para os que lá estavam!
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