segunda-feira, maio 15, 2023

O Primeiro Dia



A princípio é simples, anda-se sozinho
Passa-se nas ruas bem devagarinho
Está-se bem no silêncio e no burburinho
Bebe-se as certezas num copo de vinho
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
Diz-se do passado, que está moribundo
Bebe-se o alento num copo sem fundo
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E é então que amigos nos oferecem leito
Entra-se cansado e sai-se refeito
Luta-se por tudo o que se leva a peito
Bebe-se, come-se e alguém nos diz: Bom proveito
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
Olha-se para dentro e já pouco sobeja
Pede-se o descanso, por curto que seja
Apagam-se dúvidas num mar de cerveja
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Enfim duma escolha faz-se um desafio
Enfrenta-se a vida de fio a pavio
Navega-se sem mar, sem vela ou navio
Bebe-se a coragem até dum copo vazio
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
E outra maré cheia virá da maré vaza
Nasce um novo dia e no braço outra asa
Brinda-se aos amores com o vinho da casa

E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Sérgio Godinho

sexta-feira, abril 17, 2020

Afinal, é pelos pormenores que as pessoas se perdem

Uma das coisas boas da vida é encontrar pessoas com capacidades humanas que nós não temos, sobretudo a capacidade de amar. O amor é uma questão de delicadeza na atenção, no lento amanhecer dos pequenos nadas. Afinal, é pelos pormenores que as pessoas se perdem.
Luis Sepúlveda

quinta-feira, novembro 22, 2018

Cavalo à solta




Minha laranja amarga e doce

Meu poema feito de gomos de saudade

Minha pena pesada e leve

Secreta e pura

Minha passagem para o breve

Breve instante da loucura

Minha ousadia, meu galope, minha rédia,

Meu potro doido, minha chama,

Minha réstia de luz intensa, de voz aberta

Minha denúncia do que pensa

Do que sente a gente certa

Em ti respiro, em ti eu provo

Por ti consigo esta força que de novo

Em ti persigo, em ti percorro

Cavalo à solta pela margem do teu corpo

Minha alegria, minha amargura,

Minha coragem de correr contra a ternura

Minha laranja amarga e doce

Minha espada, meu poema feito de dois gumes

Tudo ou nada

Por ti renego, por ti aceito

Este corcel que não sussego

À desfilada no meu peito

Por isso digo canção castigo

Amêndoa, travo, corpo, alma

Amante, amigo

Por isso canto, por isso digo

Alpendre, casa, cama, arca do meu trigo

Minha alegria, minha amargura

Minha coragem de correr contra a ternura

Minha ousadia, minha aventura

Minha coragem de correr contra a ternura



José Carlos Ary dos Santos



Que arrebato! De vez em quando sou verdadeiramente arrebatada por coisas belas, como esta!
Sublime é chegar às lágrimas de comoção com a beleza. Do bem, do bom e do belo!

sábado, maio 19, 2018

Elegia das Águas Negras Para Che Guevara





Atado ao silêncio, o coração ainda
pesado de amor, jazes de perfil,
escutando, por assim dizer, as águas
negras da nossa aflição.

Pálidas vozes em prado procuram
O potro mais livre, a palmeira
mais alta sobre o lago, o barco talvez
Ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo
aguardam na noite o sol do meio-dia,
a face viva do sol onde cresces,
onde te confundes com os ramos
de sangue do verão ou o rumor
dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega
húmida dos bosques: temos que semeá-la;
chega húmida da terra: temos que defendê-la;
chega com as andorinhas
que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé;
cada palavra tua
faz do orvalho uma faca,
faz do ódio um vinho inocente
para bebermos contigo
no coração em redor do fogo.


Eugénio de Andrade


Sublime, como a vida mesma!

quinta-feira, março 15, 2018

Las pequeñas cosas


Uno se despide insensiblemente de pequeñas cosas,
Lo mismo que un árbol en tiempos de otoño queda sin sus hojas.
Al fin la tristeza es la muerte lenta de las simples cosas,
Esas cosas simples que quedan doliendo en el corazón.

Uno vuelve siempre a los viejos sitios en que amó la vida,
Y entonces comprende como están de ausentes las cosas queridas.

Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
Que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.

Demorate aquí, en la luz mayor de este mediodía,
Donde encontrarás con el pan al sol la mesa servida.

Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,
Que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.

Demorate aquí...por eso muchacho...
Demorate aquí...por eso muchacho...



Obrigada Chavela! Obrigada vida, por simplificar tudo nesta vida!
Obrigada tempo, por devorar as coisas simples das vida.

quinta-feira, outubro 12, 2017

Tchaikovsky - Violin Concerto






Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas.
Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade.
Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exatamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida.

- Sophia de Mello Breyner Andresen,
"inédito" - sem data.


... há uns anos (uns quantos, para ser mais precisa) e na eminencia de uma viagem para um destes sítios longínquos, vi o filme "O Concerto" de Radu Mihăileanu, curiosas idiossincrasias da vida... Foi desta forma que o concerto de Tchaikovsky para violino entrou de rompante na minha vida. A minha pergunta é simples: pode alguém ouvir isto sem se arrepiar até às escondidas entranhas da alma sem encharcar os olhos de emoção?

As Grutas


O esplendor poisava solene sobre o mar. E — entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido — quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é só solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. E tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superficie das águas lisas como um chão.

As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadiIha da qual os pescadores dizem ser apenas água.

Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.

Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.

O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.

E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.

Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras.

in Livro Sexto, 1962


... bom, de quando em quando sou perpassada por uma violentíssima nostalgia e uma saudade de partilhar a beleza das palavras.
in Livro Sexto, 1962

domingo, julho 16, 2017

En peores plazas hemos toreado!