domingo, março 12, 2006

Testamento















se eu morrer amigos
tentarei compensar-vos do susto
não da minha morte
mas desta conjunção condicional

sejamos razoáveis
quando eu morrer
deixo-vos a totalidade dos meus bens e dos meus males
deixo-vos também o melhor fato
será desnecessário vestirem-mo
muito menos estrangular-me com a gravata de seda
estrangulado estou eu
acho mesmo que vivi estrangulado a vida toda
fique o guarda-fatos ao vosso inteiro dispor
e os sete pares de sapatos e as escovas
e os anéis e os emblemas que me recusei a usar
não precisarei sequer de um lenço branco
para o último dos adeuses
adeuses foi o que eu andei sempre a acenar
aos instantes e aos dias
a todos os que amei a tudo o que amei e não devera amar tanto
porque amar é a melhor maneira de ir semeando desertos

será escusado colocarem-me enchumaços de papel
para levantar os ombros ou nivelar os pés
porque iriam preocupar-se com a estética
agora que é tão tarde e tão inútil
para quem vai descer de nível para sempre?

para além do mais
deixo-vos um pouco mais de espaço
não vos deixo a paz
mas deixo-vos em paz
e não precisareis mais de atender aos meus argumentos
porque então levarei comigo a razão para sempre

deixo-vos o mundo e todos os mundos e imundos por descobrir
e todos os paradoxos e problemas e enigmas
mas não vos deixo as soluções
pois só as encontrarei do outro lado do espelho
e vou precisar delas para ser feliz

deixo-vos os sonhos e os pesadelos e as insónias
prometo então dormir sem sobressaltos
e sem aquela obsessão de roubar as horas às madrugadas
com o que apenas consegui apressar a minha morte

deixo-vos o bafio das monotonias
o bolor do tempo e as tardes apodrecidas
os ciclos permanentes da água e do sol
a lei dos graves e as grávidas
cuspindo os nados-mortos que já somos

deixo-vos as cidades espezinhadas e mil penachos de fumo
o urro das multidões esfaimadas e defraudadas
os gatilhos para os dedos frenéticos
os arsenais repletos de loucura
os ditadores os que assumem o seu despotismo
e os que se escondem atrás de estátuas de liberdade
incluindo os chefes minúsculos aos berros maiúsculos

deixo-vos a herança sempre renovada
do homem lobo do homem
apostado em encher as páginas da história de façanhas
repetidas desde a caótica harmonização do caos
deixo-vos pois a oportunidade de continuarem
a construir a destruição
para além da razão e das soluções agora garantidas
para além da sombra que me pertence
deixem que leve apenas comigo algumas vagas lembranças
talvez uns olhos miúdos de esperança inundados

talvez aquele sorriso que foi o mais aconchegante dos abraços
talvez a sangria do ocaso precedendo o desmaio do dia
talvez as volutas voluptuosas dos violinos
e as espirais e devaneios do fumo do cigarro
e as fantasias das revoadas das pombas sobre os telhados
e todas as outras sinuosidades
incluindo as dos meus erros na vida
que foi a minha única maneira de aprender a caminhar

deixo-vos um montão de poemas
para a leitura sôfrega das labaredas
deixo-vos um pouco mais de esterco
para as seivas da insanidade
deixo-vos os mesmos deuses mudos e sectários
que me deixaram a mim
deixo-vos a minha bandeira azul e a rubra e a verde
que nada construíram
deixo-vos a chuva companheira de todas as minhas glórias

deixo-vos deixo-vos deixo-vos


Anthero Monteiro

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